domingo, 11 de março de 2012

Sobre ler devagar um livro interminável

Um dos motivos que sempre me desincentivou a ler "séries" foi a maldita da ansiedade. Explico: uma vez eu varei a noite lendo Como água para chocolate, de cabo a rabo, porque não conseguia encontrar uma brechinha para deixar o livro de lado. Era ansiedade demais pra saber como ia terminar.
Imaginem, então, lendo esses thrillers que estão na moda. Eu tinha a sensação de que não ia aguentar esperar o próximo lançamento ou ia passar mais noites em claro. Aí eu li a coleção do Harry Potter e sobrevivi. Não que isso tenha algo a ver com ler Em busca do tempo perdido... ou tem? Apesar de todas as distâncias que possa haver entre esses dois livros - na minha estante, nem é tão grande - comecei esse post com Harry Potter e cheguei em Proust. Estranhos caminhos.
Isso tudo, na verdade, é pra dizer que o Proust está me ensinado a ler sem ansiedade. Não que eu não pense nele durante o dia e não espere com alguma angústia o momento de chegar em casa, passar pelo ramerrame e abri o livro. É que é tão grande e tão denso que eu sei que vou demorar uns 3 anos pra terminar. Então, eu posso me deter em um parágrafo por 10 minutos ou ler 3 páginas nesse tempo, que tantufas.
Estou me detendo, por enquanto. E eu me deti outro dia numa passagem que não sai da minha cabeça, porque faz com que eu me sinta como o narrador se sente em relação a Bergotte (o escritor favorito do narrador criança, cuja principal qualidade é ver os detalhes do mundo imperceptíveis para os comuns). Segue:

Perto da igreja, cruzamos com Legrandin, que conduzia a mesma dama a seu carro. Passou por nós sem interromper a conversa com a companheira e fez-nos, com o rabo do olho, um sinal de certo modo independente das pálpebras e que, não acionando os músculos do rosto, pôde passar despercebido a sua interlocutora; mas, procurando compensar com a intensidade do sentimento o campo um pouco estreito em que circunscrevia sua expressão, fez cintilar, naquele cantinho azulado que nos reservava, toda a sua benevolência que, ultrapassando a jovialidade, raiava pela malícia; apurou as finezas da amabilidade até os piscamentos da conivência, às meias palavras, aos subentendidos, aos mistérios da cumplicidade; e finalmente exalçou as garantias de amizade até os protestos de ternura, até a declaração de amor, iluminando então só para nós, de um langor secreto e invisível à castelã, uma pupila enamorada em um rosto de gelo.

Isso tudo foi visto em um cantinho azulado.