terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Homens e não

Como prometido, um post apenas para Homens e não, do Elio Vittorini. Vou ser sincera: comprei o livro mais pela parte que fala do "amor contrariado" do Ene2 e da Berta do que pelo "significado profundo de combater e morrer, o desumano que não está fora do homem, mas é do homem e a ele pertence".
E você vai lendo, claramente tomando partido dos resistentes, porque não tem quase nada mais bonito do que música/literatura/pintura sobre resistência a regimes que hoje sabemos ser totalitários, opressores e o diabo a quatro. E basta abrir meu volume I das obras completas do J. L. Borges para achar grifados os seguintes versos:

Hablan de humanidad.
Mi humanidad está en sentir que somos voces de una misma penuria.

Gosto tanto disso que já quis usar em uma petição. E, aí, você está lendo o livro, e tem aquela passagem que é tão cruel e tão violenta que até dá vontade de chorar, só de imaginar que aquilo possa ter apenas sido pensado por alguém, e sente uma raiva infinita dos alemães e acha que eles não são gente. Mas esse é o ponto em que erramos, ah, se é.

Presumimos que esteja no homem somente o que é sofrido, e que em nós é expiado. Ter fome. Isto dizemos que está no homem. Ter frio. E sair da fome, deixar pra trás o frio, respirar o ar da terra e tê-la, ter a terra, árvores, rios, trigo, cidades, vencer o lobo e olhar de frente o mundo. Isto dizemos que está no homem.
Ter Deus desesperado dentro, em nós um espectro, e um vestido pendurado atrás da porta. Também ter dentro Deus feliz. Ser homem e mulher. Ser mãe e filhos. Tudo isto sabemos, e podemos dizer que está em nós. Tudo que é chorar sabemos: dizemos que está em nós. E tudo que é a fúria, depois a cabeça baixa e chorar. Dizemos que o gigante está em nós.
Mas o homem pode também fazer como se nada existisse nele, nem sofrimento, nem expiação, nem fome, nem frio, e nós dizemos que não é homem.
Nós o vemos. É o mesmo que o lobo. Ele ataca e fere. E nós dizemos: isto não é o homem. Faz com frieza como faz o lobo. Mas isto exclui que seja homem?
Não pensamos senão nos ofendidos. Ó homens! Ó homem!
Mal acontece a ofensa, logo estamos com quem é ofendido, e dizemos que é homem. Sangue? Eis o homem. Lágrimas? Eis o homem.
E quem ofendeu o que é?
Nunca pensamos que também ele seja o homem. Que outra coisa pode ser? De verdade, o lobo?
Hoje dizemos: é o fascismo. Ou melhor: o nazifascismo. Mas o que significa ser o fascismo? Desejaria vê-lo fora do homem, o fascismo. O que seria? O que faria? Poderia fazer aquilo que faz se não estivesse no homem poder fazê-lo? Desejaria ver Hitler e seus alemães se aquilo que fazem não estivesse no homem poder fazê-lo. Desejaria vê-los procurando fazer. Tirar deles a possibilidade humana de fazê-lo e depois lhes dizer: Vamos, façam. O que fariam?
Uma ova, diz minha avó.
Pode ser que Hitler escrevesse aquilo mesmo que escreveu, e Rosenberg, ele também; ou que escrevessem cretinices dez vezes piores. Mas eu desejaria ver, se os homens não tivessem a possibilidade de fazer o que faz Clemm, pegar e despir um homem, dá-lo como comida aos cães, eu desejaria ver o que aconteceria no mundo com suas cretinices.

Eu gosto disso. Não do nazifascismo, claro. Mas de justapor as metades. Outro dia mesmo um amigo me dizia como lhe era difícil - e lhe fazia sofrer - combinar as idéias de que sua ex-namorada era uma boa pessoa, mas havia sido cruel com ele. O livro não explica e não dá nenhuma solução sobre como tudo isso pode ser o homem.
Aí, você volta na livraria e compra É isto um homem?, do Primo Levi, segue na linha nazifascimo na Itália e continua procurando respostas.


Um comentário:

João Augusto disse...

Essa passagem é duríssima! Mas muito verdadeira... Todas as hipóteses estão dentro de cada homem...

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